14/11/2008
Audiências e julgamentos televisionados – controvérsias acerca da relação entre processo penal e liberdade de imprensa

Problema que tem despertado atenção no relacionamento entre meios de comunicação de massa e processo penal é a transmissão televisiva de audiências e julgamentos, o que coloca em relevo, sobretudo, o conflito entre a liberdade de informar e o direito à intimidade e à vida privada. A transmissão televisiva refere-se à possibilidade de ingresso de equipamentos de gravação visual nas salas de audiência ou de julgamento, com o objetivo de veicular diretamente o ato. Aqui tratamos genericamente da televisão, mas o problema também se estende à captação pelos diversos recursos audiovisuais, bem como à divulgação pela internet.

Não é de hoje que crimes e julgamentos despertam o interesse público, seja por mera curiosidade em torno da vida alheia, seja para ter conhecimento do fato, seja para  inteirar-se acerca do funcionamento dos órgãos da justiça. Entretanto, em tempos de sociedade globalizada e de meios tecnológicos cada vez mais avançados, surge efetivamente o problema de saber até que ponto é aceitável permitir a transmissão de julgamentos penais pela mídia e que critérios podem ser fixados para compatibilizar o direito de informar e de ser informado com outros valores protegidos pelo ordenamento jurídico.

Audiências e julgamentos são, em regra, atos públicos, abertos a quem os queira presenciar, o que é fundamental para a transparência do Poder Judiciário. Com isso, preservam-se os direitos e garantias das partes e tem-se uma indispensável forma de coibir o arbítrio. Todavia, para além desta publicidade que diz respeito às partes e, eventualmente, a um certo número de pessoas que compareçam ao local do julgamento ou da audiência, deve-se pensar sobre a transmissão destes atos através dos órgãos de imprensa, notadamente da televisão, por ser um dos meios mais acessíveis ao público e,  portanto, de maior capacidade de difusão.

Este tipo de publicidade, porém, impõe a consideração, principalmente, da intimidade e da privacidade das pessoas que participam do processo. Em primeiro lugar, é preciso ter em conta os aspectos da vida particular do próprio réu, os quais podem interessar ao processo, mas não devem sair daquele âmbito. Diga-se, ainda, que a exposição demasiada do acusado em decorrência do delito que lhe é atribuído acaba por se constituir também em uma espécie de punição. A possibilidade de vulneração, no entanto, não diz respeito só ao imputado. Em determinados casos, a ampla publicidade do processo ocasiona prejuízos à vítima, aumentando-lhe o sofrimento.

Por outro lado, é possível que o televisionamento amplo acarrete implicações na maneira de proceder do julgador, em virtude da pressão exercida pela opinião pública. Do mesmo modo, esta ponderação deve ser aplicada aos jurados no procedimento do júri, hipótese em que as conseqüências seriam até mais graves. Assim, a boa administração da justiça é um valor a ser sopesado em se tratando de transmissão televisiva de julgamentos e audiências, ou da gravação destes atos por outros recursos tecnológicos que proporcionem a difusão do conteúdo do processo para o grande público.

No Brasil, a transmissão televisiva de julgamento veio a debate, recentemente, no caso Suzane Louise von Richthofen, em que o Tribunal de Justiça de São Paulo negou a autorização (TJSP, 5ª Câmara da Seção Criminal, HC 972.803.3/0-00, Acórdão registrado sob o n. 01036668, relator Des. José Damião Pinheiro Machado Cogan).  A decisão denegatória fundou-se na violação do direito à intimidade e na necessidade de preservar a atuação dos jurados. No referido acórdão, afirma-se que “a publicidade do processo é uma garantia de que os atos nele praticados são feitos com lisura, daí a permanência das portas abertas de forma a que qualquer pessoa que esteja no Fórum possa ingressar e assistir à cerimônia solene. Daí a se pretender que todo o país possa assistir ao lamentável drama que se desenvolve no Plenário do tribunal do Júri, inclusive com repasse de trechos para jornais internacionais, vai uma longa distância”.

Entre nós não há uma regulamentação específica, na legislação processual penal, sobre o assunto, devendo, pois, fazer-se uma interpretação dos dispositivos constitucionais referentes à liberdade de informação, à privacidade, à intimidade e à publicidade dos atos judiciais, assim como do art. 792, §1º, CPP, valendo-se ainda das eventuais disposições contidas nos regimentos internos das Cortes.

A relação entre justiça e mídia enseja controvérsias também em outros países. Na Itália, pelo art. 147 das normas de atualização do CPP, o juiz pode permitir a transmissão televisiva ou radiofônica dos debates, desde que as partes autorizem e que não haja prejuízos para o desenvolvimento dos trabalhos. No entanto, este consentimento das partes pode ser dispensado se houver um “interesse social particularmente relevante ao conhecimento do debate” (art. 147, 2). Em qualquer hipótese, a captação da imagem de pessoas que estejam presentes, a exemplo de partes, peritos, intérpretes, depende do consentimento destas ou da inexistência de proibição legal.

Em Portugal, conforme disposto no art. 88, CPP, a transmissão ou registro de imagens de atos processuais, principalmente de audiências, exige autorização judicial, devendo-se preservar a imagem das pessoas que se opuserem à divulgação, de modo que também há um tratamento específico do direito à imagem das pessoas presentes, a exemplo do que ocorre no sistema italiano.

Nos Estados Unidos da América, os Estados que autorizam o acesso de televisão, rádio e fotógrafos nas salas de audiência estabelecem regras para a cobertura. Em quase todos os casos, exige-se o consentimento do juiz, o qual detém poderes para interferir na transmissão ao longo dos trabalhos. Os regulamentos também prevêem, em regra, normas sobre os equipamentos, número de pessoas, tipo de câmeras, posição dos profissionais e movimentos na sala de julgamento.

Vê-se, pois, que, em relação ao tema, algumas questões revelam-se particularmente instigantes, tais como: que critérios podem ser estabelecidos para que haja restrição às transmissões?  Seria mais adequado permitir a veiculação parcial ou integral do julgamento? Em que medida o acompanhamento das audiências através dos meios de comunicação social pode ter um caráter educativo sobre a forma de atuação do sistema judicial penal de um país?

De fato, é necessário que haja critérios objetivos, a fim de que a matéria não dependa apenas da discricionariedade judicial. Assim, na eventualidade de um ordenamento jurídico aceitar julgamentos televisionados total ou parcialmente, o mínimo que se deve exigir é a anuência da defesa e do acusado, bem como o respeito ao direito à imagem daqueles participantes que não queiram ser identificados. No mais, é essencial uma análise ponderada sobre se o caso efetivamente é de interesse público ou não, o que tornaria a medida bastante rara, reservada, possivelmente, a processos com relevância histórica. Por outro lado, a transmissão integral do julgamento parece ser mais adequada, haja vista que a divulgação parcial poderia gerar controvérsias sobre os critérios para a escolha do que seria levado à opinião pública, possibilitando manipulações e uma visão distorcida do julgamento.

Quanto ao caráter educativo das transmissões, é possível que haja alguma contribuição para que o público conheça melhor o sistema judiciário de seu país, entretanto, esta finalidade também pode ser atingida mediante outras iniciativas, como palestras de magistrados em escolas, debates públicos, dentre outras.

O tema merece ainda uma apreciação à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, que deve funcionar como parâmetro para todas as ações do Estado, principalmente se considerarmos sua posição no texto constitucional, que o enquadra como um princípio fundamental da República Federativa Brasileira. Deste modo, há de ter-se sempre a cautela no sentido de que a pessoa humana obtenha um tratamento digno e não seja objeto puro e simples de apreciação pública, preocupação que é de especial relevância na sociedade contemporânea, em que a observação da vida alheia torna-se cada vez mais uma fonte de entretenimento.

Do exposto, evidencia-se a necessidade de que a matéria seja disciplinada no ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que o avanço tecnológico certamente tornará mais freqüentes estes confrontos entre a mídia e o Judiciário. Uma conclusão sobre as vantagens e desvantagens do acesso da imprensa a julgamentos dependerá da regulamentação e, principalmente, da experimentação. De fato, é importante que o Estado viva as próprias experiências e, a partir delas, formule regras que se adaptem às suas particularidades e aos anseios da sociedade. Além disso, é fundamental a exigência de rigor ético, punindo os comportamentos desviantes, em relação a jornalistas, juízes, advogados e promotores de justiça.

Rosimeire Ventura Leite, juíza de direito na Comarca de Princesa Isabel - PB, doutoranda em Direito Processual Penal pela USP, Juíza de Direito (TJPB) e professora universitária (UEPB).

Artigo publicado na Revista Jurídica Consulex, de 28 de fevereiro de 2007.

Autor:   Rosimeire Ventura Leite

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