‘Benção’, ‘padecimento no paraíso’, ‘dádiva divina’, ‘vocação originária da mulher’, ‘símbolo do feminino’. As expressões fazem parte da construção solidificada do sentido da maternidade na espécie humana e não se identificar com este papel ainda é um tabu que ronda o universo feminino. Ser mãe nem sempre é o sonho e a realização de toda mulher. E a lei assegura àquela que engravida e não quer exercer a maternidade o direito de entregar, voluntariamente, o filho para adoção; de ser protegida e de ter respeitada a sua decisão.
A Lei nº 13.509, datada de 22 de novembro de 2017, contempla, ainda, o direito desta mulher gestante de receber acompanhamento psicossocial durante e depois da gestação, fazendo jus ao nome dado ao programa existente em todo o Brasil, por determinação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): ‘Acolher’. Para tanto, ela deve procurar a Vara da Infância e Juventude – órgão responsável pelo processo que poderá resultar na entrega do bebê para a adoção, bem como pelo acompanhamento da genitora e seu encaminhamento aos serviços necessários.
No Juizado da Infância e Juventude de João Pessoa, o programa é desenvolvido por um setor interdisciplinar, formado por seis profissionais especializadas (psicólogas, assistentes sociais e pedagoga), que realizam este trabalho de atendimento e acompanhamento de mulheres gestantes, que, por quaisquer motivos, não desejam ficar com o bebê gerado.
Em 2018, o Setor de Guarda, vinculado à 1ª Vara da Infância e Juventude da Capital, realizou nove casos de acompanhamento e entrega voluntária. Em 2019, até o momento, a equipe está acompanhando seis mulheres gestantes, porém não é certo que todas farão a entrega dos bebês.
“Pode haver desistências, durante o processo, mas não induzimos a isso. Estamos voltadas para esta mulher para facilitar que ela tome uma decisão consciente; para que ela seja acolhida por meio de escutas e de serviços públicos necessários. Sem constrangimentos, sem julgamentos. Nosso serviço busca assegurar que nem ela nem o bebê sejam colocados em risco, durante a gestação, o parto e após a gravidez”, explicou uma das psicólogas do setor, Maria Gorreti Dantas Abrantes, apontando para a necessidade de se desconstruir o mito da ‘mãe ruim’, associado à entrega para a adoção. “Ela acaba sendo olhada pela sociedade de forma minúscula”, complementou.
Para a pedagoga Letícia Melo Hampel, ao procurar a Justiça para fazer a entrega voluntária do bebê para a adoção, a mãe biológica está garantindo a própria segurança e a da criança. Ela lembra que a entrega não se constitui um crime, mas o abandono, sim. “No nosso país, a responsabilidade de gerar e criar é sobretudo da mulher. Então, quando ela decide que não vai maternar uma criança que está gerando, além das próprias questões, terá que enfrentar toda uma sociedade que vai culpabilizá-la porque ela está entregando, mas que, também, a culpabilizaria se ela ficasse com a criança sem condições. Então, não é uma questão fácil”, analisou.
A procura pelo Juizado ou Vara da Infância e Juventude pode ser feita diretamente pelas gestantes, mas, maternidades, conselhos tutelares, hospitais ou outras instituições que tomarem conhecimento de mulheres com esta necessidade podem fazer o encaminhamento ou acionar o Setor de Guarda.
O Setor também encaminha ofícios e realiza visitas às maternidades para fortalecer a parceria; incentiva a conscientização dos profissionais de saúde e das pacientes a respeito do devido processo legal utilizado para a adoção e informar sobre a situação das gestantes acompanhadas, a fim de que elas não sofram discriminação.
O primeiro contato com o serviço
Nos primeiros contatos com o setor, as psicólogas apontam que já pode haver mudanças positivas no psicológico das mulheres que procuram ou são encaminhadas ao Programa. “Elas chegam fragilizadas. Com o acompanhamento da equipe, conseguem elaborar melhor o que realmente querem, por conta da confiança que recebem. Muitas desistem de doar porque reconhecem como direito delas criar a criança mesmo sem condições financeiras”, afirmou a também psicóloga Andressa Lígia Guimarães.
Andressa revelou que a maioria das mulheres chega em estado de desespero. “Há casos em que a família não aceita; outros, de abandono ou ameaças feitas pelo genitor, por conta da gestação ser fruto de um relacionamento extraconjugal. Às vezes, é uma mulher com dificuldades financeiras, que já têm filhos e os cria sozinha. O fato é que elas chegam muito solitárias e, aqui, com o suporte e a escuta necessária, adquirem mais confiança para decidir sobre entregar ou ficar com a criança”, esclareceu.
Também é dado à mulher o direito garantido pela lei de não falar sobre o genitor e sobre a família paterna, caso não queira. “A gente pergunta se existe algum contato. Muitas delas não querem falar sobre isso, pois às vezes, envolve violência, ameaça, ou apenas uma relação casual. Elas têm prioridade na decisão. Geralmente, esta figura paterna não existe”, comentou Andressa.
Características mais comuns
As profissionais afirmam que não há um perfil fechado da mulher que pretende fazer a entrega voluntária. Porém, é possível enumerar algumas características presentes. De acordo com Andressa, a baixa escolaridade e a falta de recursos financeiros são mais comuns, mas não são exclusivos. “Também já recebemos mulheres com um razoável nível escolar e financeiro, mas que decidiram não ter filhos. Não conseguem desejar isso; não construíram um lugar simbólico para aquela criança e possuem um projeto de vida em que não cabe um filho”, pontuou a psicóloga.
Quando a motivação é, apenas, de ordem financeira, que é uma alegação comum, toda a rede deverá atuar no sentido de auxiliar a solucionar esta carência de recursos, visto que o próprio ECA defende não ser esta uma razão suficiente, conforme elucidou a pedagoga Letícia Hampel. As questões mais problemáticas, no entanto, são as que ultrapassam a seara orçamentária e chegam a uma dimensão psicológica complexa, muitas vezes, relacionada ao tipo de relacionamentos que elas tiveram.
“Também observamos, de imediato, a existência de demandas não exatamente ligadas à gestação, mas que foram negligenciadas ao longo do tempo, a exemplo da baixa escolaridade, por exemplo, visto que elas tiveram isso interrompido em algum ponto da vida. Então, neste atendimento, procuramos ver o interesse delas de retomar o estudo, que é muito importante”, enfatizou a pedagoga.
Processo: gestação, parto e puerpério
O processo judicial para a futura entrega da criança é iniciado mesmo com a mulher ainda gestante, quando ela entra em contato com o Judiciário, tendo acesso, assim, a todos os encaminhamentos necessários de algum serviço da rede de proteção, seja assistência psicológica, social, entre outros. No entanto, o seu desejo de entrega da criança só será confirmado em audiência, após o parto.
Na ocasião, o juiz já estará munido de todas as informações anexadas em relatório sobre as motivações da mulher e as possibilidades existentes, inclusive, sobre possível adoção por membro da família biológica, que tem prioridade, caso a mulher permita, conforme o ECA. Também na audiência são esclarecidos todos os prazos, inclusive para desistência, e o acompanhamento ao qual ela terá direito.
Durante o parto, as gestantes podem optar não ter contato com a criança, bem como podem escolher não amamentar, para evitar vínculos afetivos, conforme salientou a psicóloga Andressa. No entanto, elas precisam registrar a criança. “Muitas têm dificuldade, pois até colocar um nome é uma forma de vínculo, mas este procedimento é necessário, porque não há como doar uma criança que não é sua. E isso também faz parte da história daquele ser”, explicou, acrescentando que já houve, também, casos de desistência da entrega na hora do parto.
A criança é, então, encaminhada para uma família acolhedora, que é uma das medidas protetivas garantidas, visto que o cuidado com um bebê é diferenciado. Esta família é monitorada pelo setor de acolhimento institucional das Varas da Infância. Só depois, há o encaminhamento para a adoção, cuja prioridade é dada à pessoa habilitada que se encontra na frente da fila do Cadastro Nacional de Adoção (CNA).
“Quando esta criança adotada completar 18 anos, terá o direito de saber quem foi a mãe biológica dela, a pessoa que a gerou. Todas essas informações estarão guardadas”, informou Maria Goreti.
Avanços e desafios
Para as três atuantes no Setor, embora a lei seja recente e venha sofrendo alterações constantes, a existência do serviço com este olhar é um avanço, enquanto política pública para a mulher. “Ainda caminhamos devagar nestas questões sobre a maternidade, mas, poder falar sobre isso, fazer com que outras mulheres reflitam sobre, pensar sobre novas formas familiares, é uma luz, sem dúvida. São mudanças de pensamento”, disse Maria Goreti.
Um dos desafios apontados ainda é a falta de preparo dos órgãos para lidar com o assunto. “Já recebemos denúncias de mulheres desrespeitadas, que foram forçadas a amamentar, induzidas a repensar a posição delas e que não se sentiram acolhidas, como foram aqui”, contou Andressa.
Outro desafio é evitar a prática da chamada “adoção à brasileira”, cuja entrega é feita, de forma ilegal, sem a atuação da Justiça. Ao diferenciar a adoção legal desta prática, Letícia Hampel explicou que, a adoção ilícita pode acabar desaguando no Judiciário mais tarde, como demandas de abusos, violência, negligência. “Pode haver rejeições e resistências graves, quando a mentalidade é ‘peguei pra criar o filho de outra pessoa.’”, explicou.
Já na entrega voluntária à Justiça, há o cuidado de que este bebê seja encaminhado a uma família que desejou adotar uma criança, se habilitou para isso, passou por avaliação, curso, acompanhamento e estaria, por isso, mais preparada para tornar seu um filho gerado por outra pessoa.
Perguntadas se o conhecimento mais amplo acerca da existência desta lei poderia diminuir o número de abortos, elas acreditam que não é possível opinar sobre isso sem um estudo aprofundado, por se tratar de outra situação delicada, em que muitas mulheres não conseguem conceber a ideia de gestar. Mas defenderam que é importante que elas saibam da existência desta opção legal.
Lei nº 13.509 de 22 de novembro de 2017, que dispõe sobre adoção e altera a Lei no 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA) e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). A alteração no ECA foi feita para dispor sobre entrega voluntária, destituição do poder familiar, acolhimento, apadrinhamento, guarda e adoção de crianças e adolescentes, entre outros assuntos.
O contato com o Setor de Guarda pode ser feito pelo telefone (83) 3222-6156. Também atuam no Acolher as assistentes sociais Maria Mayara Lima Raulim e Luana Vidal e a psicóloga Mariana Camilo.