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A invenção de Zumbi


Sueli Carneiro


Pesquisadora do CNPq e diretora do Geledés - Instituto
da Mulher Negra



Bendito vidro moído nos bofes do Senhor
bendita a lança, as balas de Zumbi, do Haiti
(Sou duro de Oliveira da Silveira)




Sou de uma geração de crianças negras que
cresceu ouvindo dizer que Zumbi era um fantasma sem
beira nem eira, doido perambulando pelas encruzilhadas
assombrando como alma penada. O nome de Zumbi sempre
foi identificado, associado como negro à imagem do
diabo, do pecado. Ao contrário da representação
imagética ''dócil'' de Negrinho do Pastoreio ou mágico
do mito mutilado (sem uma perna) Saci Pererê.


O Aurelião já registra o Zumbi, chefe do
Quilombo dos Palmares, assim como acrescenta ao
verbete a idéia ''de fantasma segundo a crença afro-
brasileira, vaga pela noite morta''. O significado
negativo se institucionalizou não apenas graças aos
dicionários, mas, principalmente, aos instrumentos
educativos e meios de comunicação.


O militante do Movimento Negro que tiver a
oportunidade de conhecer a Praça São Pedro, em Recife,
e imaginar a cabeça espetada em exibição pública como
ícone de advertência à punição poderá refletir com
orgulho sobre o processo de construção de Zumbi dos
Palmares, como um herói nacional que segue crescendo
também em nível internacional. No ano passado, o
festejamos na Alemanha; em anos anteriores, em Nova
York, Bogotá, lugares para onde ele é conduzido pela
imigração afro-brasileira, propriado pela diáspora
africana e incorporado à tradição pan-africanista ou
por acadêmicos da área de estudos sobre a escravidão e
resistência nas Américas. Caminha Zumbi dos Palmares
para atingir a estatura histórica de Simon Bolivar,
José Martí e outros símbolos das lutas por liberdade
da região americana.


E devemos à poesia essa reinvenção da
história. Da inspiração do poeta negro gaúcho Oliveira
Silveira de retirar do silêncio da historiografia
oficial a figura mítica de Zumbi dos Palmares e
ressignificá-la como símbolo da consciência negra do
passado e do presente, em oposição à verdade
oficialesca que instituiu a princesa Isabel como a
redentora dos escravos ocultando a resistência dos
negros à escravidão. A partir de então, a arte
inventa, inaugura um marco histórico singularíssimo. A
intuição do poeta inspirou revisões historiográficas
que alcançaram resgatar a saga e o sentido do quilombo
dos Palmares como a primeira tentativa histórica de
construção da democracia no Brasil.


A proposta de Oliveira Silveira ecoou e se
irradiou por todas as organizações negras. Sambas-
enredos, livros, músicas, construções de emblemas
conceberam a Zumbi uma requalificação da idéia de
herói brasileiro.


Assim, o poeta provoca o recontar da história, usando
o poder e a propriedade que a arte concebe na
contramão dos jogos políticos.


As imagens do sanguinário bandeirante paulista
Domingos Jorge Velho, de Duque de Caxias da Guerra do
Paraguai, da destruição da Canudos, do sufocamento da
Revolta da Chibata são exemplos de heróis edificados
pelos inventores de túnicas de um Brasil branco. A
construção de Zumbi como herói dos povos negros e
excluídos de todas as cores brasileiras contraria essa
hagiologia fundamentada na dor, no martírio, no
derrotismo.


Espremido entre o dia 15 de novembro, alusivo
à proclamação da República, e 19 à bandeira, o dia 20
se reveste de uma dimensão inaudita sobrepondo as duas
datas da historiografia oficial. Assume contornos
políticos de grande profundidade na história
contemporânea, sob a égide de Zumbi pelo vitalismo que
de sua imagem emana como dínamo de todos os projetos
de reparação que se processam na sociedade.


Mas os herdeiros de Jorge Velho e Caxias
permanecem atentos. Assombrados pelo vitalismo pós-
morte de Zumbi dos Palmares, buscam no presente como
no passado destruir-lhe a dimensão histórica recusando-
lhe o feriado que há anos está a exigir a consciência
negra. Os togados de hoje buscam conter e sobrepor com
golpes de caneta aquilo que se impõe como necessidade
histórica: a perpetuação de sua memória e, por
extensão, o reconhecimento da consciência negra como
credora de injustiças passadas e atuais.


Assim, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul empreendeu a cassação do feriado aprovado pela
Câmara de Vereadores concedendo a liminar a entidades
representativas do comércio e da indústria que
consideraram o feriado prejudicial aos seus negócios.
No Rio, a Justiça suspendeu o feriado de 20 de
novembro, mas o STF não confirmou a decisão.


Mas saibam, senhores, que golpes de caneta não
podem mais destruir um herói que retorna da eternidade
e do silêncio da história para manter latente, na
mente e no coração de seu povo, o desejo de liberdade
e para lembrar que, como sempre, a luta
continua.




Artigo publicado no Correio Braziliense -
21.11.2003


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Assessora de Imprensa - Jaqueline Medeiros

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