A magistratura e os tribunais brasileiros estão entre os mais avançados em âmbito global e preparados para prestar jurisdição no desafiante contexto das tecnologias disruptivas.
A avaliação foi feita por ministros e expoentes do Poder Judiciário em conferências realizadas na sexta-feira (15 de novembro), durante o 8º Encontro Nacional de Juízes Estaduais (Enaje).
Realizado pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), com o apoio da Apamagis, o evento aconteceu no Memorial da América Latina, em São Paulo.
A presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministra Cármen Lúcia, fez a conferência na manhã do segundo dia do encontro, expondo a organização da Justiça Eleitoral para assegurar eleições municipais com a participação de 465 mil candidatos e quase 156 milhões de eleitores.
Ao fazer o balanço final, a ministra traçou um quadro positivo, lembrando que a Justiça Eleitoral garantiu eleições seguras, transparentes e com um volume de fake news inferior ao inicialmente previsto.
Cármen Lúcia também abordou o impacto do mundo disruptivo no Judiciário, destacando que, embora a tecnologia seja benéfica para a prestação da Justiça, a regulação é imprescindível.
Humanidade
Com um olhar voltado aos problemas sociais, a ministra valorizou o papel dos magistrados e associou a Justiça à sensibilidade. “O bom juiz, quando fala, a Justiça se pronuncia”, afirmou. “O bom juiz faz com que a voz da Justiça seja igual e é aquele que tem muita humanidade no seu tratamento, valendo-se de todas as normas, possibilidades e, especialmente, das técnicas e tecnologias para tornar mais eficaz o seu desempenho. Mas é preciso trabalhar com a ideia de que há muitas e enormes desumanidades praticadas.”
Sobre atos que ameaçam o Estado Democrático de Direito, a presidente do TSE reforçou a força das instituições. “Acordamos mais ocupados com os nossos compromissos e as nossas responsabilidades com a democracia brasileira. Isso não significa que, por um atentado tão grave, nós tenhamos, em algum momento, de nos afastar dos princípios e, especialmente, do ideal que temos com a democracia: de seres humanos para seres humanos”, disse.
Magistratura moderna
A capacidade dos juízes de se adaptarem às inovações foi um dos pontos explorados pelo ministro José Antonio Dias Toffoli (STF). Para Toffoli, a magistratura do Brasil é a mais moderna e independente em nível global. Como exemplo, ele citou a capacidade de julgamento dos juízes e dos tribunais, que administram um acervo de 83 milhões de processos.
“Precisamos mostrar isso ao mundo. Isso é um asset — para usar um termo econômico —, é um soft power. Nosso soft power não é mais o futebol, são as nossas instituições, e o mundo tem que ver como são sólidas.”
Durante sua gestão à frente do STF e do CNJ, Toffoli teve que lidar com a calamidade pública da pandemia. Na época, o CNJ adotou uma série de medidas para garantir que a Justiça não parasse, ao contrário do que foi observado em vários países, que suspenderam o atendimento à sociedade.
Em tempos de acelerada mudança tecnológica e ameaças à democracia, o ministro destacou que os alicerces do Estado Democrático de Direito são: a magistratura como defensora de uma verdade factual, a imprensa livre e a ciência amparada na razão
Novas fronteiras do Direito Penal
O ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Joel Ilan Paciornik abordou as novas fronteiras do Direito, especialmente no Direito Penal no mundo virtual.
Paciornik destacou que as inovações trouxeram transformações qualitativas no Sistema de Justiça e na jurisdição. Um exemplo disso é o fato de o Brasil possuir 74 tribunais com acervos processuais completamente em formato eletrônico.
“São dados animadores, mas não podemos nos esquecer de que, além desses benefícios, vêm as consequências negativas, com as quais devemos nos preocupar: é o que chamo de colapso do sistema de persecução penal, e isso requer de nós uma mudança de paradigma”, explicou.
Para o ministro, é essencial reinterpretar o mundo da criminalidade sob uma nova perspectiva.
“Através de um celular ou computador, a milhares de quilômetros de distância, pessoas praticam crimes. Precisamos resignificar as clássicas teorias do Direito Penal sobre o tempo e o lugar do crime. Concebemos, em 1940, teorias que tratam do tempo e do lugar da consumação do crime. Hoje, temos crimes praticados na internet, e o Estado ainda não possui mecanismos suficientes para combater esse tipo de criminalidade.”
Paciornik também alertou para os riscos ampliados de crimes virtuais contra segmentos vulneráveis, como a pornografia infantil praticada com o uso de dispositivos móveis e plataformas digitais.
Entre as iniciativas para enfrentar essa nova realidade, ele apontou os acordos de cooperação internacional e os avanços relacionados à utilização de procedimentos que asseguram a integralidade e a integridade de provas digitais. Normas nesse sentido já começam a ser desenvolvidas pelo CNJ.
Redes sociais
Os dilemas entre o público e o privado, a liberdade de expressão, a polarização ideológica e o fascínio das redes sociais foram temas abordados pela ministra Morgana de Almeida Richa (TST).
Expoente do Poder Judiciário, a magistrada apresentou um panorama dos atos normativos recentes sobre juízes nas redes sociais e as regras que estabelecem limites para suas manifestações.
Morgana destacou casos de uso inadequado que comprometem a imagem da magistratura e questionou:
“Seriam os juízes uma questão além da liberdade de expressão? Haveria aqui uma censura, uma forma de controle em relação aos juízes, sendo a liberdade de expressão um direito fundamental?”
Segundo a ministra, o juiz intra muros continua sendo juiz. “Os magistrados são vistos como magistrados onde quer que estejam, inclusive nas redes sociais. A imparcialidade é o santo graal do Judiciário. E quando postamos concepções, opiniões e preconceitos, isso compromete a percepção de imparcialidade do Judiciário e do Sistema de Justiça.”
Direitos fundamentais
A garantia do acesso à Justiça e aos direitos fundamentais em tempos de virtualização foi o ponto central abordado pela desembargadora Andréa Pachá (TJ-RJ).
Com base em sua experiência, Andréa falou sobre a prestação jurisdicional para a resolução de conflitos.
“Nós, da magistratura estadual, temos trabalhado para dar efetividade aos direitos fundamentais, especialmente os direitos à saúde, das crianças e adolescentes, dos idosos, e o direito ao meio ambiente sustentável. Além disso, buscamos a equidade de gênero e reafirmamos que o princípio da inocência e das garantias são fundamentais para a preservação da democracia e da civilidade.”
Ela destacou que muitos conflitos poderiam ser solucionados sem a judicialização, observando que essa tendência reflete uma sociedade que, muitas vezes, recorre ao Judiciário para resolver questões que deveriam ser mediadas de outra forma.
“Precisamos assumir o papel de garantidores dos direitos fundamentais e dar respostas adequadas à sociedade. Não podemos assimilar demandas de uma sociedade infantilizada que deseja interferências estatais seletivas, mas, sim, focar na redução das desigualdades.”